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Lava-Jato realça nova geração de advogados

Valor Econômico | Jul 2016

Publicado no Valor Econômico

A Operação Lava-Jato mudou os padrões da investigação criminal no Brasil e fez despontar uma nova geração de advogados penalistas, tirando o foco da velha guarda simbolizada, principalmente, pelos nomes que subiram à tribuna no julgamento do mensalão. Com 30 a 40 anos de idade os jovens penalistas, que torcem o nariz se chamados de doutores, adotam estratégias mais pragmáticas de defesa. Uma diferença marcante é a postura mais aberta quanto à delação premiada, vista com antipatia pela antiga geração.

A apuração do escândalo de corrupção na Petrobras produziu uma profusão de acordos de colaboração premiada sem precedentes na Justiça brasileira. Desde que o ex-diretor da estatal Paulo Roberto Costa abriu a fila, já são mais de 60. Essa nova realidade levou os penalistas em ascensão a espelhar outros países, principalmente os Estados Unidos, onde a delação é tradição há décadas. Alguns estão até fazendo cursos de especialização no assunto, mas preferem manter sigilo para não criar embaraço a clientes. Outros criaram grupos de estudos em que também analisam casos em órgãos como o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), que acumula um histórico de acordos de leniência desde 2003.

O episódio recente de maior repercussão da Lava-Jato teve a delação costurada pela advogada Fernanda Tórtima, 39 anos. Foi ela quem alinhavou o acordo do ex-presidente da Transpetro Sérgio Machado com a Procuradoria-Geral da República, livrando o cliente do risco iminente de prisão, com benefícios considerados extremamente vantajosos. As revelações de Machado provocaram a queda de dois ministros do governo do presidente interino Michel Temer e deixaram em apuros o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), o ex-presidente da República José Sarney e vários outros políticos.

Ao comentar o assunto, Fernanda deixa transparecer que a opção por delatar nem sempre é confortável. “Principiologicamente, sou contra. Mas em determinados momentos, é necessário simplesmente cumprir o mandato [da defesa] e fazer o que é melhor para o cliente”, diz. Diante de um potencial delator, ela segue uma espécie de cartilha. “O mais importante é não transigir em relação à verdade, não omitir, não distorcer. Se isso não for feito, há um risco gravíssimo de perder tudo.” Fernanda também é uma das advogadas à frente do processo mais rumoroso da Lava-Jato no momento, envolvendo o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha (PMDB-RJ).

A defesa de Cunha conta ainda com dois outros jovens advogados, Pedro Ivo Velloso, 32, e Ticiano Figueiredo, 33. Eles entraram na causa com a saída do ex-procurador-geral da República Antonio Fernando de Souza, 67. Pedro Ivo e Ticiano estudaram juntos na Universidade de Brasília (UnB), fizeram pós-graduação em direito penal e, no fim de 2014, criaram seu próprio escritório, o Figueiredo e Velloso. Os dois estrearam na Lava-Jato bem no começo. Mas logo deixaram os processos quando os clientes decidiram fechar acordos de delação.

Pedro Ivo trabalhava no escritório do criminalista Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, 58, que fazia a defesa do doleiro Alberto Youssef nos tribunais em Brasília. Quando o doleiro comunicou o interesse em delatar, Kakay deixou o caso e Pedro Ivo saiu junto. “Primeiro, porque ele iria entregar, como entregou, 50 clientes meus”, diz Kakay ao justificar a saída. “Segundo, porque a delação é feita hoje muitas vezes sem um princípio ético. Vejo colegas fazendo delação de pessoas que entregam clientes deles. Isso eu não posso imaginar. Aí, eu sou ‘vintage’ mesmo”. Kakay jura que não é contra a delação, mas sim o que chama de “excessos praticados na Lava-Jato”. Sustenta ainda que fechar uma delação é “muito mais fácil” que conduzir a defesa tradicional. “Não tem nenhuma atividade intelectual, é como um entregador de pizza. Vi um vídeo em que, enquanto o cliente delatava, a advogada fazia as unhas. Para mim, delatar é a coisa mais dolorosa que existe.”

Ticiano teve trajetória semelhante à de Pedro Ivo. Durante o julgamento do mensalão, trabalhou com o renomado criminalista Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, 70. Mais tarde, quando a Lava-Jato veio à tona em 2014, Ticiano assumiu a defesa do doleiro Carlos Habib Chater. Mas abandonou a causa quando o doleiro decidiu partir para a delação, porque ele mesmo não trabalhava com esse instrumento na época.

Pedro Ivo e Ticiano não poupam elogios a seus mestres, a quem atribuem muito do que sabem de defesa criminal. Mas quando falam sobre acordos com o Ministério Público (MP), adotam postura bem diferente. “A delação é hoje parte do direito de defesa”, afirma Pedro Ivo. “E isso muda tudo. Quem não faz está remando contra o direito penal moderno”, acrescenta Ticiano.

Com oito clientes na Lava-Jato, o advogado Pierpaolo Cruz Bottini, 39, criou um grupo de estudos em seu escritório, o Bottini & Tamasauskas, para estudar a experiência americana com colaboração premiada e disciplinas como análise negocial. “Conversamos com muita gente especializada em direito da concorrência e com atuação no Cade, pela experiência com acordos de leniência”, conta. Para ele, a defesa criminal clássica, com as teses processuais e de mérito, continua sendo o principal caminho. Porém o advogado hoje deve estar preparado para assumir, em situações específicas, a possibilidade dos vários tipos de acordo com o MP e os órgãos antitruste e de transparência. Na Lava-Jato, foi Pierpaolo quem amarrou a delação do ex-presidente da Camargo Corrêa Dalton Avancini.

Um dos que despontaram com a operação foi o advogado Rodrigo Mudrovitsch, 31, que faz a defesa de dez clientes na Lava-Jato, entre eles os senadores petistas Gleisi Hoffmann (PR), Humberto Costa (PE) e Lindberg Farias (RJ), além do ex-ministro Paulo Bernardo, marido de Gleisi. Para ele, as novas técnicas de investigação forçaram mudanças na estrutura dos escritórios de advocacia. “Temos consultores que analisam material de mídia, e-mail, dados. O que a Polícia Federal tem a gente tem que ter também”, diz. Assim como seus colegas, ele não vê a delação com preconceito. “Se factualmente seu cliente estiver encurralado, você vai ter que buscar outra alternativa. Isso vai passar pela leniência, pela delação premiada. Advogado que não faz acabará fora do mercado.” No caso dele, a experiência com acordos de leniência no Cade serve como parâmetro para eventuais negociações com o MP.

Outros jovens que se destacam na Lava-Jato são os advogados Maíra Salomi, 32, que atua na defesa do ex-ministro Edinho Silva e da Mossack Fonseca, Fábio Tofic Simantob, 36, que defende o publicitário João Santana, e Maurício Silva Leite, 40, com o ex-senador Delcídio do Amaral (ex-PT-MS).

Talvez a ditadura (1964-1985) explique em parte a diferença de postura entre a velha e a jovem guarda em relação ao delator. Para quem viveu o regime militar, a delação vinha carregada de uma conotação negativa forte do ponto de vista ideológico. Para a nova geração, quando se trata de denunciar uma organização criminosa, a figura do delator perde em parte o sentido negativo para abrir espaço à busca da verdade, com a reconciliação do delator consigo próprio e com os valores da sociedade.

A postura dos mais jovens também se explica pelo trauma do mensalão, quando os maiores penalistas do país sofreram, em sua maioria, uma derrota acachapante. A dura condenação do empresário Marcos Valério serviu de exemplo a se evitar. Muitos atribuem ao “efeito Marcos Valério” a decisão de Paulo Roberto Costa de inaugurar as demolidoras delações da Lava-Jato. Some-se a isso o fato de a colaboração premiada só ter sido regulamentada no Brasil em 2013, com a Lei das Organizações Criminosas.

Para a ministra aposentada do Superior Tribunal de Justiça Eliana Calmon, a mudança de perfil na defesa começou depois do mensalão. Ela diz que muitos advogados criavam obstáculos ao processo para livrar clientes, mas a estratégia foi um desastre. “A advocacia hoje é bem mais técnica porque não pegam mais as teses de nulidades processuais”, opina. Ela acredita que o Supremo Tribunal Federal mudou e as relações pessoais já não bastam para garantir sucesso na corte. “Antes um caso tinha quatro ou cinco advogados, cada um tinha influência com cada um dos julgadores. Na Lava-Jato não tem mais isso”.

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