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Quando o Estado bloqueia tudo: Medidas cautelares penais patrimoniais

Consultor Jurídico | 7 Mai 2020

São dispensáveis maiores digressões sobre as dificuldades que já são experimentadas — e serão ainda mais — pelas sociedades empresárias, no Brasil e no resto do mundo, notadamente nos países em que as consequências da pandemia se fizeram sentir mais gravemente. Pouquíssimas empresas mantém o mesmo nível de receitas, muitas já demitem em massa e deixam de cumprir suas obrigações. E isso produz um enorme efeito cascata que antecipa um longo período de recessão e, depois dela, esforços coordenados para reconstruir as economias.

Nesse contexto, o mínimo que se pode esperar, para além de medidas de socorro a serem apresentadas pelo Poder Público, é um maior cuidado, por parte dos órgãos responsáveis pela persecução penal, com as consequências econômicas de suas ações. As medidas cautelares constritivas patrimoniais em desfavor de pessoas jurídicas, ainda que, por meio delas, seus executivos e funcionários tenham praticado crimes, demandam especial atenção.

Não é de hoje que se alerta para o fato de que, em matéria de crimes que envolvem empresas, o poder punitivo estatal deve ser implementado de forma a comprometer na menor medida possível a sua atividade econômica. É necessária uma ponderação entre, de um lado, o interesse da persecução penal e da rigorosa administração da Justiça e, de outro, o da sobrevivência da sociedade empresarial.

Destruir empresas é ceifar postos de trabalho, esmaecer o consumo e a arrecadação de impostos, desperdiçar o conteúdo nacional, diminuir a competitividade do país e, no fim do dia, inviabilizar o seu desenvolvimento.

Nesse contexto, importante que se faça uma análise das medidas constritivas de patrimônio de empresas no processo penal: o sequestro e o arresto. Na primeira, são bloqueados bens de possível origem criminosa. Na segunda, a medida recai sobre patrimônio licito para assegurar futura reparação de danos em caso de condenação.

No primeiro caso, a legitimidade da medida é indiscutível. A empresa que recebeu bens ou valores de origem ilícita pode ser alvo de medidas constritivas patrimoniais, ainda que o autor do respectivo crime não seja seu funcionário ou executivo, desde que os ativos ilícitos tenham passado a compor seu patrimônio, e isso independentemente da prática de atos de lavagem de capitais.

Já no arresto alguma cautela é necessária.

Um dos autores deste artigo, em outra oportunidade, (1), já alertava para a impossibilidade de decretação de medida de arresto em desfavor de pessoas jurídicas, ainda que em casos de acusação dos respectivos executivos ou funcionários por prática de lavagem de dinheiro. Como exposto, o arresto destina-se a garantir a reparação do dano, o pagamento de multas e as despesas processuais em caso de condenação. Bem por isso, apenas pessoas físicas podem ter bens arrestados, pois somente elas podem ser condenadas criminalmente (2).

Antes de adentrar a análise do tema principal desse artigo, voltado para as medidas cautelares penais contra o patrimônio de pessoas jurídicas, faremos breve digressão a respeito de cautelares da mesma natureza decretadas em desfavor de pessoas físicas. É que, considerando-se a necessidade urgente de aquecimento da economia, ou seja, de circulação de capitais, diante da brutal recessão que se avizinha, talvez a maior desde a grande depressão de 1929, é preciso cuidado com implementação de tais medidas, mesmo em relação a pessoas físicas.

No cenário atual, não raro, sequer se pode identificar em cautelares patrimoniais a exata natureza da medida, ou seja, não se sabe ao certo quando se trata de medida de sequestro (de ativos ilícitos) ou de arresto (de ativos a serem usados futuramente para eventual ressarcimento de prejuízos).

São comuns figuras híbridas de bloqueio de ativos, que acabam por tornar indisponíveis todo o patrimônio do acusado — presente e futuro —, sem que se saiba exatamente quais bens e valores foram sequestrados e quais foram arrestados.

Essa diferenciação se torna tanto mais necessária quando se trata de cautelar decretada em caso de imputação de crime de lavagem de capitais, situação em que, por expressa determinação legal, inverte-se o ônus da prova, devendo o acusado, que pretenda ter seus ativos disponibilizados, provar a origem lícita dos bens, em caso de decretação de sequestro.

Caso se trate de constrição cautelar com natureza de arresto — e, repita-se, a natureza da medida deve estar definida na decisão — é preciso, antes de tudo, dimensionar, com base em dados fáticos, o prejuízo causado, para que se tenham os parâmetros correspondentes para a medida.

Apenas um exemplo: em casos de crime de corrupção, há decisões cautelares, visando futura reparação de danos, que tomam como parâmetro o valor da propina paga a determinado funcionário público, o que, por óbvio, nada tem a ver com prejuízo eventualmente causado ao erário. Aliás, pode-se dizer que, na verdade, nem sempre há prejuízo diretamente aferível e a ser ressarcido em caso de condenação por crime de corrupção, circunstância que parece ser diuturnamente desconsiderada.

Nas fraudes em licitações, é frequente a determinação de arresto de ativos de acusados, como base no valor recebido pela empresa de que são sócios, em contraprestação a serviços prestados no âmbito de determinado contrato, até mesmo quando não há indicação de superfaturamento. Ora, considerando terem sido prestados serviços, é possível afirmar que todo o valor contratado e recebido pela empresa em questão consiste em prejuízo a ser ressarcido? Parece claro que não.

Portanto, mesmo no que diz com pessoas físicas, em se tratando de indisponibilidade cautelar de bens, não se pode prescindir de critérios e parâmetros muito bem determinados, mormente, como se disse, em tempos de depressão econômica.

Retomemos agora o tema inicialmente proposto, qual seja, o das medidas cautelares penais contra o patrimônio de pessoas jurídicas.

No que se refere ao sequestro, embora a medida seja legítima, alguns cuidados devem ser tomados para que a cautelar não inviabilize o funcionamento da empresa antes de um juízo definitivo acerca da origem ilícita dos bens. Empresas em graves dificuldades econômicas deixam de pagar impostos, funcionários e credores. Exatamente por isso, é preciso ter cautela, ainda quando se trate de sequestro de ativos de origem supostamente ilícita.

Em artigo sobre a persecução penal contra sociedades empresárias, especialmente sobre o caso Arthur Andersen (3), a Professora Patrícia H. Bucy, da Universidade do Alabama, informou que a experiência no referido caso tornou os membros do Ministério Público americano mais cautelosos quando o alvo é uma corporação (4). Em seguida, explicou a Professora que além da preocupação no sentido de que persecuções penais agressivas podem destruir negócios viáveis, os órgãos de acusação querem que as corporações exponham atos ilícitos eventualmente ocorridos (5).

Em outras palavras: não fosse o comedimento na aplicação do direito penal e respectivas medidas cautelares,  recomendável para preservar empresas, também o seria como incentivo a que atos ilícitos praticados isoladamente por seus executivos ou funcionários sejam denunciados por seus departamentos de conformidade às instâncias adequadas, interna e externamente. Parece bastante claro ser um desincentivo ao correto funcionamento dos sistemas de compliance a possibilidade de que o disclosure acerca de ilicitudes praticadas no âmbito da sociedade findem por destruí-la.

Isso não quer dizer, por óbvio, que não se possa decretar sequestro sobre ativos ilícitos que tenham passado a compor o patrimônio de determinadas sociedades, mas sim que tais medidas devem ser empreendidas com alguma cautela, olhos postos no atual cenário de devastação econômica, em evidente processo de agravamento.

É preciso, em primeiro lugar, tratar o ativo circulante de empresas — necessário ao pagamento de funcionários e credores — de forma responsável.

De saída, a fungibilidade de valores depositados em conta corrente já dificulta a indicação de que tenham eles origem ilícita, salvo em casos específicos, em que se venha a determinar a indisponibilidade de depósitos que tenham sido feitos como exata contrapartida a atos ilícitos praticados. É evidente que estamos falando aqui de sociedades empresárias com real atividade operacional e não de empresas de fachada constituídas com o propósito de viabilizar o recebimento de valores de origem espúria.

Quanto ao ativo não circulante, a exemplo do imobilizado, é preciso que a decisão de sequestro traga fundadas suspeitas acerca do caminho do dinheiro percorrido, desde a realização do suposto ato ilícito até a aquisição do bem alvo da medida cautelar de sequestro.

Por fim, feitas já tantas considerações visando limitar, o quanto possível, o uso de medidas cautelares patrimoniais, notadamente em desfavor de pessoas jurídicas, cabe ainda tratar de eventuais alternativas de lege ferenda para garantir a manutenção das atividades econômicas de empresas contra as quais medidas cautelares patrimoniais sejam justificadas, a não ser nos casos em que a empresa é mera fachada, sem atividade alguma para além da prática criminosa.

Nesse sentido, é possível pensar na elaboração de mecanismos para preservar minimamente a liquidez de empresas, mesmo se e quando necessária a constrição cautelar de seus ativos.

A exemplo do que se fez em relação a medidas cautelares pessoais, criando-se alternativas às prisões preventivas, é possível pensar em opções para mitigar os efeitos nefastos das medidas cautelares patrimoniais contra pessoas jurídicas.

Nesse sentido, pode-se indicar,  a título de exemplo, a obrigatoriedade de contratação de auditorias externas e monitorias para fiscalizar medidas de proibição de distribuição de dividendos ou de saídas de caixa para fins não operacionais, depósito paulatino e viável — de acordo com o ability to pay a ser aferido por auditoria externa — de valores a serem futuramente perdidos, e ainda a prestação de garantias judiciais sob a forma de fiança bancária ou seguro-garantia, todas medidas a serem cumpridas em substituição ao sequestro dos ativos, principalmente daqueles destinados ao cumprimento de obrigações que digam respeito à sobrevivência da sociedade.

Em breve síntese, o que se pretende é demonstrar ser possível construir um direito penal — e, nesse caso, processual penal — que siga ao propósito último de servir à sociedade, não apenas para punir os responsáveis por violações intoleráveis às normas jurídicas, mas também para garantir que apenas esses, e não terceiros absolutamente alheios a essas infrações, venham a sofrer as graves consequências jurídicas, de natureza pessoal e patrimonial, próprias desse ramo do direito.

(1) Em: https://www.conjur.com.br/2019-ago-05/direito-defesa-bloqueio-bens-empresas-crimes-lavagem-dinheiro.

(2) Como se sabe, pelo direito brasileiro, apenas em casos de crimes ambientais, pessoas jurídicas podem figurar como acusadas em ações penais.

(3) A Arthur Andersen, uma das maiores empresas de auditoria do mundo, foi acusada e condenada por obstrução de justiça por ter supostamente destruído documentos de sua então cliente, Enron. Dois anos depois a condenação foi revista pela Suprema Corte americana.

(4) No sistema jurídico americano, pessoas jurídicas podem ser acusadas e condenadas criminalmente, sem as restrições do direito brasileiro. De qualquer forma, ainda que o texto trate de persecução penal, e não apenas de medidas cautelares, contra empresas, o alerta é plenamente aplicável para o que se pretende expor aqui.

(5) Disponível, mediante, assinatura, em:  https://heinonline.org/HOL/LandingPage?handle=hein.journals/amcrimlr44&div=44&id=&page= (página 1287).

Artigo publicado no Consultor Jurídico.